15/11/2009

1964 a 1969

Depois da primeira experiência com conjuntos musicais, apareceu a oportunidade de arranjar contrato com a empresa do Cine Teatro Vale Formoso, cujo gerente era o nosso amigo e senhor Mota.
Tivemos que nos profissionalizar, arranjei novos e bons músicos e demos novo nome ao agrupamento que passou a designar-se por THE STRANGER BOYS. Para além de tocar no Vale Formoso no intervalo dos filmes, o conjunto passou a ser presença habitual no programa FESTIVAL que aos domingos de manhã enchiam o Vale Formoso. Este programa, apresentado pelo falecido Fernando Gonçalves, era transmitido em directo pelos então Emissores do Norte Reunidos. Mais tarde, este programa passou para o Teatro Sã da Bandeira e deu lugar à Rádio Festival.
Por este programa musical passaram todos os grandes artistas portugueses da altura, como cabeças de cartaz. Também foi o Festival que lançou dezenas de artistas como Lenita Gentil, Maria da Fé, Florência ou Maria de Fátima "O Passarinho do Festival".
Conheci dezenas, talvez mesmo centenas de artistas, nos cinco anos que dediquei à música. Foi nesta altura que conheci MARIA DO ROSÁRIO que viria a reencontrar nas noites fadistas de Ílhavo. Corremos todos os locais onde queriam bailarico ao som da nossa música. Estivemos mais de um ano a "dar baile" num clube das Escadas dos Guindais que dava pelo nome de ROSAS DA SÉ, do nosso amigo Moura.
As Confecções Mico tinham um administrador que nos apoiava. Por isso, foi fácil convencer Rafael Machado a ceder-nos um prédio devoluto da empresa, que ficava na Praça Exército Libertador número 4, ao Carvalhido, para ensaios do conjunto. Até aí, os ensaios decorriam dentro da própria fábrica, depois das horas de trabalho e ao fim de semana.
A mulher de Rafael Machado e também ela admnistradora da Mico, era amiga de Pedro Osório que eu bem conhecia porque eu vivia na Rua Anselmo Braancamp e ele vivia umas dezenas de metros mais abaixo, na Rua Firmeza. Também conhecia muito bem seu pai, o senhor Osório que trabalhava na casa bancária Sousa Cruz, na Praça da Liberdade, mesmo ao lado do extinto e célebre café Astória.
Eu tinha um grande amigo no Sousa Cruz, que era o Fernando Amorim, a quem eu ajudava nalgumas tarefas do banco e, por isso mesmo, convivi com a maioria dos empregados daquela casa. O senhor Osório, era quem fechava o banco ao fim da tarde.
Como Pedro Osório tinha um conjunto musical de renome, foi, a pedido da Maria do Rosário, assistir a um dos nossos ensaios e logo ali prometeu arranjar-nos trabalho. Assim foi, tocamos com eles na Ordem dos Engenheiros numa dessas ocasiões.
No final de 1967 a MICO estava a ir à falência e o seu vendedor Fernando Ascenção Resende Rodrigues, em conjunto com o mestre alfaiate Miguel da Silva Lima resolveram montar uma nova fábrica de confecções a que deram o nome de Confecções Marquês. Com algum capital entrou o genro de Miguel Lima, Gil dos Santos Frederico.
Convidaram-me e eu acompanhei-os na nova etapa da minha vida. Fui para chefe de escritório e a música continuou.
A maioria da nova fábrica foi montada com equipamentos adquiridos a prestações na firma Alfredo Barros & Irmão. O negócio envolvia letras que eram reformadas todos os meses com amortização (a prestação) e novas letras. Um dia, os irmãos Barros, resolveram ir recolher as amortizações e as novas letras, como sempre faziam. Só que, as amortizações e as novas letras deram entrada noutros bancos. Quer dizer, os lesados e foram centenas, passaram a dever as novas letras e as antigas. Resumindo, ficamos a dever o dobro. Eles foram presos mas provocaram a falência de dezenas de fábricas. Foi até àquela altura o maior roubo financeiro de sempre.
Assim, as Confecções Marquês, sitas na Rua de Costa Cabral, faliram ao fim de dois curtos anos de existência. Acabei com o conjunto e dediquei-me às escritas particulares, até porque estava a um ano de ingressar no serviço militar e ninguém me dava trabalho por via disso mesmo.

1964

Já vivia na Rua das Flôres, no edifício da Sociedade Comercial de Malhas e Miudezas, grande armazém de malhas e miudezas muito conhecido em todo o continente e ilhas simplesmente pelo nome "Sociedade". Vivia no segundo andar e trabalhava no rés-do-chão, depois de ter trabalhado no escritório de advogados que mais tarde passou a ser a nossa casa. Ainda hoje vive lá meu pai com a sua nova mulher, uma vez que voltou a casar após a morte de minha mãe em 13 de Julho de 1986.
Os patrões da Sociedade eram o Henrique e o João Barbosa. O Henrique gostava muito de mim e era muito exigente. Por isso é que aprendi muito com ele e com colegas muito mais velhos como os senhores João, Ferreira (beganini, porque andava sempre a mascar pastilhas daquela marca), Paiva, Valério, Pena, Rosas, Zé Maria, José Leão e muitos outros, uma vez que o estabelecimento tinhas dezenas de empregados e meia-dúzia de viajantes.
Estive apenas dois anos ao serviço da Sociedade mas foram dois anos de grande escola. Trabalhava das 9 às 19 horas e, às 19 e 5 minutos, entrava na Escola Comercial Oliveira Martins na sua secção da Rua das Taipas, onde frequentei o curso geral do comércio. Tinha aulas até às 23 horas e imensas disciplinas.
Em 1966 saí da Sociedade e fui trabalhar, mais ou menos meio ano, para a Higifarma na Rua de Santa Catarina. Era uma empresa de produtos de higiene e farmácia e aí, tive o melhor patrão de toda a minha vida de empregado - Carlos Alberto Raposo de Melo. Era tão bom este senhor, que pagava bem e a horas, era educadíssimo, muito culto, elegantíssimo, bondoso e passava a vida a dar produtos aos empregados e amigos.
Ainda em 1966 arranjei novo emprego, sempre a melhorar o vencimento e o lugar e, passei a trabalhar na MICO-Manufactura Industrial de Confecções Mico, SARL, como se designavam na altura as sociedades anónimas. SARL queria dizer sociedade anónima de responsabilidade limitada.
A Mico empregava mais de 100 trabalhadores, na sua maioria mulheres e dedicava-se à confecção de fatos de trabalho, gabardinas, impermeáveis para a chuva (vulgo tapa-chuvas)etc. Foi na Mico que conheci Belmiro de Azevedo, na altura um normal engenheiro da SONAE para onde fornecíamos os fatos de trabalho. Também nesta fábrica se confeccionavam fardas para o exército, trabalho que fazíamos em sub-contratação da firma Rodrigues & Rodrigues de Lisboa.
Foi a MICO que me proporcionou o conhecimento com um dos meus grandes amigos de sempre o Pedro Almeida, que ali exercia as funções de afinador de máquinas. Continuamos grandes amigos até hoje e continuaremos até sempre.
Se nos advogados atendia as pessoas, digitava requerimentos à máquina (Underwod ou Remington), na Sociedade atendia ao balcão e estava na caixa, na Higifarma estava no armazém e abastecia as farmácias e perfumarias, na Mico fui para o escritório para a área de processamento de salários, gestão de stocks e mais tarde, gestão e controle de produção e do pessoal. O curso comercial e a prática anterior deram-me bagagem suficiente para bem novo, 16, 17 anos, estar com tão grande responsabilidade na empresa. E ganhava bem na altura, 2 mil escudos por mês e já 14 meses de ordenado, embora não fosse obrigatório.
Só para termo de comparação, nessa época, uma viagem de eléctrico no Porto, 1 zona custava 8 tostões ou 80 centavos e a gasolina custava 5 escudos e oitenta o litro. A super (hoje 98) custava 6 escudos e trinta centavos (hoje 3 cêntimos e 15)
Ainda em 1966, por influência de meu amigo Delfim, que morava na Rua da Vitória e tinha uma viola acústica, electrificada e com amplificador, resolvi influenciar outro amigo que trabalhava nos armazéns da Mico, Henrique Magalhães e juntando o Delfim, ao meu primo Mário que andava a aprender a tocar guitarra, com o Jervel que tinha a mania (como eu) que sabia tocar bateria e cantar, lá formei o meu primeiro conjunto musical.
Eu e o Henrique Magalhães fomos à casa Ritmo, na Rua 31 de Janeiro no Porto, onde trabalhava o meu amigo Miranda (que viveu na pensão de minha madrinha na Rua das Flôres, mais de 40 anos e lá morreu) e, falando com o dono da loja, Henrique Pinto Leite, comprei duas guitarras eléctricas, bateria completa, amplificadores de instrumentos e de vozes, colunas e microfones. Assim nasceram os TOMAOKS. O que queria dizer? Não sei, mas era coisa de índios.

12/04/2009

1959 a 1963

Como já referi, o último ano da escola primária, hoje 4º ano do ensino básico, foi vivido na freguesia do Bonfim, mais exatamente na Rua Anselmo Braancamp. Tinha como vizinha, entre muitas outras, a D. Justina, uma excelente modista que trabalhava para as cantadeiras e mulheres da vida artística e da noite do Porto, que trabalhavam nas casas de espectáculos e nas boites Candeia e Tamariz.
Uma das suas clientes, talvez a mais famosa, era Maria Clara que vivia na mesma rua Anselmo Braancamp uns números mais abaixo. A D. Justina quando tinha os trabalhos prontos pedia-me para os ir entregar e as senhoras davam-me uma gorgetazita para os rebuçados. Mas a D. Maria Clara, nome artístico de Maria da Conceição Ferreira (falecida a 1 setembro 2009) que tinha um único filho, era mais generosa e de vez em quando oferecia-me um lanche para eu fazer companhia a seu filho Julinho, com quem brinquei algumas vezes. O Julinho, que tem a minha idade, que hoje é bem conhecido dos portugueses, é o Júlio Machado Vaz, que foi professor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e que, para além de falar muito na TV do seu Benfica, é chamado ao pequeno ecrã sempre que o tema é sexologia. Já teve inclusivamente uma programa seu sobre este tema.
Ao fundo da minha rua do Anselmo, fica a Rua da Firmeza e lá vivia naquela altura, na década de 60, o senhor Osório, que conheci na casa bancária Sousa Cruz que ficava ao lado do famoso café Astória, ali em frente à estação de São Bento. Este senhor Osório tinha um filho que tocava umas coisas lá em casa e mais tarde fez parte de vários agrupamentos musicais, tornando-se no que é hoje conhecido por maestro Pedro Osório (falecido em 5 janeiro 2012).
Após a saída da escola primária, em Junho de 1959, fui trabalhar para um escritório de advogados na Rua da Flores. Tavares da Conceição, Sérgio de Pinho e Henrique Souto eram os advogados, para além de Cesário Bonito, solicitador, todos eles foram os meus primeiros patrões e onde aprendi a escrever à máquina, ia aos tribunais e repartições públicas, prisões e organismos de polícia.
Para ganhar mais uns tostões e porque o trabalho me fascinava, passava algum tempo com o sapateiro que tinha a sua "barraquinha" à entrada da "ilha" onde eu vivia. Ali aprendi algumas coisinhas do ofício e ia levar os trabalhos aos fregueses que me gratificavam.
Para quem não sabe, havia no Porto uns aglomerados habitacionais (ainda existem alguns) a que davam o nome de ilhas. A "minha ilha" era um conjunto de meia dúzia de casinhas, independentes umas das outras, com res-do-chão e um quartinho no sótão. Eram casinhas muito pequenas, mas independentes.
Depois do escritório de advocacia, que ficava no 2º andar, fui tabalhar para o rés-do-chão do mesmo prédio, para um grande armazém de comércio que dava pelo nome de Sociedade Comercial de Malhas e Miudezas, onde aprendi muito do que ainda hoje sei. Lá conheci muita gente, especialmente feirantes e vendedores ambulantes, uma vez que a firma era de venda por grosso. Um dos fregueses que lá conheci e atendi chamava-se Joaquim Ferreira Torres irmão do já célebre Avelino, do Marco, ou de Amarante. Outro dos clientes da Sociedade era o senhor Artur Pinho que já conhecia do ano de 1958, quando vivi em Vagos.
Na Sociedade como era simplesmente chamada, trabalhei muito mas também aprendi muito do que hoje sei. A par deste trabalho, aos 14 anos fui estudar de noite para o curso geral do comércio da Escola Oliveira Martins, que ficava na Rua das Taipas e na Rua do Sol.

04/08/2007

1955 a 1958

Sou o Henrique, filho mais velho do casal Abílio e Cândida, frequentei a escola primária – como então se chamava – de Entrequintas, na rua com o mesmo nome, onde entrei em Outubro de 1955, para a primeira classe.


Por razões que a memória esqueceu, mudei no ano seguinte para a escola da Bandeirinha, também na Rua com o mesmo nome, onde fiz a segunda classe e os meses de Outubro e Novembro da terceira classe.
Mais ou menos por esta altura, tive o meu primeiro grande desgosto com o meu pai, um mulherengo incorrigível. Era muito trabalhador, o escritório de advogados na Rua das Flores tinha imenso trabalho e eram vários os advogados. Henrique Souto, Tavares da Conceição, Sérgio de Pinho e o solicitador Cesário Bonito, tinham imenso trabalho para meu pai executar.
Henrique Souto era de Estarreja, Tavares da Conceição da Murtosa, Sérgio de Pinho e Cesário Bonito, do Porto. Normalmente vinham a partir do meio da tarde para atender os clientes e as consultas estendiam-se pela noite dentro.
Henrique Souto, para além de ser casado, tinha uma enorme e íntima amizade com uma senhora da Rua Silva Porto, que vinha visitar o amigo ao consultório.
Meu pai aprendeu com o patrão e, também ele, tinha "amigas" que o iam visitar ao escritório, como eu, anos mais tarde, viria a comprovar com os meus próprios olhos.
Meu pai foi um grande impulsionador do associativismo, tendo ajudado a fundar associações como a Associação Dramática e Musical de Massarelos e a União Desportiva de Massarelos. A primeira dedicava-se ao teatro e bailaricos, a segunda ao desporto e ambas ao convívio entre associados. Aos bailaricos o meu pai nunca faltava e levava-me consigo o que me provocava imensos ciúmes, quando o via dançar com todas aquelas mulheres que o assediavam por ele ser louro e de olhos azuis esverdeados. Mas também era casado e com um filho.

Em 1957, meu pai foi convidado pelo seu patrão de então, Dr. Henrique Souto, para ir chefiar a Fábrica Cerâmica de Vagos, em Aveiro, onde exerceria as funções de encarregado e administrativas, pelo que em Dezembro desse mesmo ano, rumei com minha mãe e mobílias, para a casa que a Cerâmica possuía (ainda está de pé) na Rua Cândido dos Reis, em Vagos. Por isso, parte da terceira classe e dois meses da quarta classe foram passadas na Escola Primária de Vagos, na altura instalada no actual Edifício João Grave.


O primeiro grande desgosto que meu pai me proporcionou, muito mais grave que aqueles bailaricos em que ele esmifrava e muito as garotas que com ele dançava, foi exactamente nos escritórios da Cerâmica. Minha mãe já sabia que as mulheres que ali trabalhavam, assediavam meu pai e não tinham vergonha de enviar bilhetinhos que iam na roupa da casa de banho que minha mãe lavava em casa. A minha mãe via os bilhetes, mas já estava habituada a ver meu pai ser assediado pelas mulheres.
Mas um dia eu entrei no escritório e vi meu pai abraçado a uma das raparigas que trabalhavam na fábrica. Abraçava, beijava, apalpava e tão entusiasmado estava com a rapariga contra a parede que nem deu pela minha presença. Mas a rapariga viu-me e ficou aterrorizada e sem reacção. Ela tinha 18 anos e ele 30. Hoje ela tem 68 e ele 80. Foram várias as raparigas que se "atiraram" ao meu pai na Cerâmica, para não dizer todas as que lá trabalhavam.
Isto passou-se em 1958 e hoje estamos em 2009. Passaram 51 anos, as raparigas hoje sexagenárias estão todas vivas. Todas casaram e algumas tiveram filhos. Uma delas é amiga da família e eu perdoei-lhe ter assediado meu pai porque era muito nova e meu pai é que devia ter tido juízo, que não teve e continua a não ter, infelizmente.
Deu muitas facadas no matrimónio, até arranjar filhos extra matrimónio.
Em Abril de 1958 dá-se o nascimento de minha irmã Ana, que veio nascer a casa de meus avós Arnaldo e Alina, na Rua de Cristelo, no Porto. Após o parto, minha mãe regressou a Vagos e por lá estivemos até ao mês de Dezembro desse ano, tendo meu pai abandonado a Cerâmica por divergências com o Dr. Souto. Meu pai não permitiu que este senhor “passasse a perna” aos outros dois sócios Dr. Tavares da Conceição, advogado e Dr. Madureira, veterinário.


Portanto, em Dezembro de 1958, venho a conhecer a minha quarta escola primária, a do Bonfim, sita no Largo do Bonfim, para acabar a quarta classe e fazer o exame de admissão que existia na altura.


Fui parar ao Bonfim porque a nossa nova casa ficava na Rua Anselmo Braancamp, paralela às Ruas D. João IV e Santos Pousada.

Penso que por razões que se prendem com uma ou duas anestesias gerais a que fui submetido e, porque andei a saltar de um lado para o outro, tendo conhecido muitos colegas e professores, tenho muito poucas recordações do ensino primário.


Há dias fui ao Hospital de Santo António no Porto fazer uns exames. A enfermeira que fez a colheita do sangue, questionou o meu apelido Samagaio e perguntou de onde era. Respondi que vivia em Vagos mas que era natural de Massarelos, ali bem perto do Hospital.


Ela disse que conhecia “muito bem” o meu pai e olhando para a ficha constatou que tínhamos exactamente a mesma idade. Como nascemos na mesma freguesia, e em ruas contíguas pelo menos a primeira classe partilhamos juntos, mas eu não tenho nenhuma recordação dela.


As melhores recordações que guardo daquele período da minha infância, lembram mais as raparigas que os rapazes. Claro que me lembro muito bem dos meus primos Mário Samagaio e Fernando Mota, dos filhos da minha “prima” Angelina, especialmente do Augusto, do Zé, do Abílio, lembro-me do Zé, filho do Fernando sapateiro e da Rosa, do filho da Gavina, dos filhos da Alice, especialmente da lindíssima Cândida afilhada de minha mãe, dos filhos da Maria Augusta e do Isolino, da família Castanhas, etc.


Mas, na verdade, ainda hoje lembro as brincadeiras com a Cândida filha da Alice, com a Mena filha da Maria Augusta ou a Zeza da família Lobão, que residia no prédio da mercearia e onde vivia uma pândega deficiente. Era adorável aquela menina portadora de deficiência motora e mental. Apesar de andar em cadeira de rodas e se expressar mal, adorava cantar e dançar em cima da cadeira. Tinha uma alegria enorme. Não me recordo do seu nome, infelizmente.


A mercearia era do Sr. José Peres, que mais tarde veio a tomar de trespasse um dos famosos cafés frente à Universidade do Porto. Depois de José Peres, tomou conta da mercearia a Dadinha – não recordo o seu verdadeiro nome.

15/07/2007

1949 a 1954


Nasci na MATERNIDADE DE JÚLIO DINIS, sita no Largo da Maternidade, freguesia de Massarelos, concelho e distrito do Porto. Viviam meus pais na Rua do Cristelo, também freguesia de Massarelos, uma rua que parte da Calçada de Sobre-o-Douro e termina no Largo do Adro.

Em 1949, ano em que nasci, a Rua do Cristelo era a nossa creche, a pré-escola, o infantário e o ATL, tudo num só espaço que era e é, a rua estreita onde viviam meus pais, avós paternos, tios e primos. Por isso a rua era, naquela zona onde está o nicho do Senhor dos Aflitos, habitada quase só pela nossa família e mais meia dúzia de famílias amigas.

A garotada brincava na rua, fazia as suas necessidades na rua, no Verão muitos vinham fazer as suas assadas para a rua ou para a beira-rio, nos bancos de pedra que ainda hoje lá estão. As ruas são estreitas e as casas muito pequenas e algumas nem casa de banho tinham.

Com casas pequenas e uma rua habitada por familiares e vizinhos muito amigos, e muito pouco movimento de automóveis, era natural que a vida dos miúdos como eu, fosse passada na rua. Os estendais de roupa das casas térreas também se colocavam na rua e era à rua que vínhamos encher os cântaros de água, no fontanário na Calçada de Sobre-o-Douro.

A nossa casa ficava ao lado da imagem do Senhor dos Aflitos, na Rua de Cristelo. No último andar do nosso prédio viviam meus tios Francisco e Germana Mota, com os filhos Fernando e Gracinda, mais velhos que eu quatro ou cinco anos. A tia Germana era irmã de minha avó paterna Alina e o Tio Francisco trabalhava numa grande pensão do Porto que ainda hoje existe e se chama Pensão Aviz, na Rua de Entreparedes. Anos mais tarde o Fernando foi trabalhar para a Sociedade Portuense de Drogas e a irmã Gracinda foi viver com o marido, também Francisco, para Chaves.
A porta do lado direito quem olha de frente para a imagem do Senhor dos Aflitos era da casa de meus avós paternos Arnaldo e Alina, de minha tia Maria José e meu primo Mário. Viviam todos no segundo andar esquerdo, que compartilhavam no direito com a família Gavina que mais tarde abandonou a casa, que foi ocupada por minha tia.

No primeiro piso vivia o Fernando (sapateiro) e sua mulher Rosa, com o filho José. O Fernando era um simpático e pachorrento homem, que com a Rosa, uma possante e enérgica mulher faziam um casal curioso e divertido, principalmente quando o Deus Baco fazia as suas incursões pela casa, facto que acontecia com relativa assiduidade, mais ou menos dia sim, dia sim.

Para situarem melhor a Rua de Cristelo, como já dissemos começa na Calçada de Sobre-o-Douro, que por sua vez começa numa das últimas transversais quem desce a Rua da Restauração do lado esquerdo, aquela rua que vem do Jardim da Cordoaria, onde fica a Torre dos Clérigos e o Hospital Geral de Santo António.

Quem for à torre dos jardins do Palácio de Cristal e olhar em direcção à Ponte da Arrábida, vai encontrar no horizonte a torre da Igreja de Massarelos, vê um pouco da Restauração e maravilha-se com a paisagem do Rio Douro e cidade de Gaia. Massarelos fica aos pés do Palácio de Cristal, mas, como diria minha avó, tem pernas para lhe chegar às bentas (como se diz no Porto).